segunda-feira, 8 de julho de 2019

Amo-te

AMO-TE porque o desejo de ti era mais forte do que qualquer felicidade. Sei agora, a vida
não é bastante grande para manter unido tudo aquilo que o desejo consegue imaginar.
Não tentei deter-me.
Nem deter-te.
E rebentou de repente
um ruído calado. Havia cacos
de um monólogo que cortava como lâminas.
Depois, por entre caminhos que não percebo bem
por entre palavras por dizer
por entre beijos na pele
daquilo que és
por entre música de paz
cheguei aqui, na vontade
de ter mil noites
num lugar que me curaria.
Mas curar é uma palavra demasiado pequena, e simples, para o que aconteceu: despirmo-nos de nós próprios.
Despirmo-nos de tudo.
Como se não houvesse destroços alguns à frente.

Poema de Ricardo Gomes

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Eterno retorno

Há o teu rosto dentro do teu rosto:único e múltiplo.
As tuas mãos de outrora nas tuas mãos de agora
há o primeiro amor que é sempre o último
antes do tempo ou só depois da hora.

E vinhas de tão longe. E era tão fundo.
Eu conheço-te. E era por mim. E era por ti. E era por dois.
E havia na tua voz o princípio do mundo.
E era antes da Terra. E era depois.


Manuel Alegre
Livro do Português Errante
Publicações D. Quixote

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Filosofia do Amor


"mas enquanto bebias o sumo, 
sentia-o correr na minha garganta,
como se a vida fosse uma prova do contrário do que dizem os filósofos,
pelo menos neste preciso ponto
 em que nos sentimos um como o outro."

Nuno Júdice, in Navegação de Acaso

Publicações Dom Quixote, Lisboa 2013

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Uma luz que nunca desvanece

Dos elementos mais dinamicamente surpreendentes dos Smiths era que, entre a sensualidade e a angústia, a ironia e a crítica social, costumavam colar às suas letras uma matéria rítmica e melódica de grande invenção e inovação. “There Is a Light That Never Goes Out” é de uma intensa luminosidade musical que ressoa a um tempo e que se pode condensar na seguinte fórmula: “live fast, die young, be wild, and have fun!” Se estivéssemos numa aula de literatura, e se quiséssemos arranjar igual magnitude em frémito passional, poderíamos falar em livros que influenciaram de facto a vida real, como “A Paixão do Jovem Werther”, que inspirou uma onda de suicídios na altura da sua publicação. E tudo por causa do amor. A analogia serve de ponte para a opus magnum por excelência, que é, There Is a Light That Never Goes Out, que também foi considerada pelos críticos como uma das canções mais influentes de sempre. Apesar da “luz” não ser a mesma do jovem Werther; a de um amor não correspondido, Morrissey e Marr, acabam por tocar no cerne do mesmo  phatos, isto é, na “luz trágica” de um amor até à desmesura dos sentimentos. A canção ilustra bem as consequências de um amor tão intenso e desesperado que encontra a glorificação na perpectiva de um fatal acidente de carro como passagem para o paraíso: “que forma tão celestial de morrer”.Vamos mais uma vez fazer tese de que quando cada um de nós equaciona música e vida, porque naquela reencontra e reescreve a sua identidade mais funda; deixa sair as suas dores e não contém as alegrias; revive num plano duplo graças à música. Talvez, seja por isso, que acedemos à íntima dimensão de sonhar acordados. Entre o que sabemos e o que não sabemos acerca de nós próprios, o que se repete e o que é irrepetível na nossa vida, o que faz e o que desfaz o sentido, se nos virmos reflectidos no rosto de alguém.
há uma luz que nunca desvanece"
Ricardo Gomes, recensão sobre a canção
 " There is a light That Never Goes out" - The Smiths

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Luz

Tu és a esperança, a madrugada.
Nasceste nas tardes de Setembro,
quando a luz é perfeita e mais doirada,
e há uma fonte crescendo no silêncio
da boca mais sombria e mais fechada.

Para ti criei palavras sem sentido,
inventei brumas, lagos densos,
e deixei no ar braços suspensos
ao encontro da luz que anda contigo.

Tu és a esperança onde deponho
Meus versos que não podem ser mais nada.
Esperança minha, onde meus olhos bebem,
fundo, como quem bebe a madrugada.



 Eugénio de Andrade, In As Mãos e os Frutos

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Nunca

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andersen
Poesia
Assírio & Alvim

Imagem: Maria João Alves

sábado, 9 de fevereiro de 2019

Descansa

Desencontra, descansa
no teu corpo. Nunca
dos sítios de onde fugiste.
Vem de longe o braço. E refaz o gesto
na proximidades daqueles que têm medo.
Fomos. Vamos
pela noite, não sabemos o quê,
tão calados
na pele um do outro.

Rui Nunes, Armadilha


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Plumas Brancas

Cabeça emplumada porque na testa
te amarraram as finas hastes
De valorosas plumas brancas
E olhas
por detrás de um céu amarelo
que te pintaram
ao redor dos olhos.
Manuel  Gusmão , in Pequeno Tratado das Figuras
Assírio & Alvim

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O coração é a capital da mente

Emily Dickinson, Duzentos Poemas. Tradução, organização e posfácio de Ana Luísa Amaral. Relógio D´Água Editores, Outubro de 2014.

Céu

O vagabundo possui dois relógios que não podem ser comprados na Tiffany; num pulso o sol, no outro a lua, ambas as braceletes são feitas de céu.
 - Jack Kerouac

Vou por este caminho de olhos fechados

“E não te importes se o sol se esconde
sob o manto cansado do teu desejo: senti-lo-ás
latejar com o fogo de uma pulsão
de lábios. E as folhas afastar-se-ão
à tua passagem, quando saíres do jardim
e um ruido de fonte te guiar
os passos ainda incertos. «Que importa»,
dir-me-ás? «Vou por este caminho
de olhos fechados, e conheço cada canto
pela respiração do amor.»”

Cântico do Fogo, Nuno Júdice, “Navegação de acaso”